Histórico da Propriedade Fundiária e Especulação Imobiliária na Cidade de São Paulo - Parte 2

Histórico da Propriedade Fundiária e Especulação Imobiliária na Cidade de São Paulo - Parte 2


Século XX



No início do século XX, um fator importante que tem seu fundamento lançado nesse momento de evolução da cidade é a valorização de seu setor sudoeste, desenhado inicialmente pelo percurso Campos Elíseos – Higienópolis - Paulista, e que se prolongou no decorrer do século XX, configurando uma centralidade da elite da cidade, o espaço que historicamente concentra valores imobiliários altos, o comércio mais elegante, as mansões e apartamentos mais opulentos, o consumo cultural da moeda e a maior concentração de investimentos públicos. (BOTELHO, 2007)

Aos poucos a marcha do território rico foi abandonando áreas encurraladas por zonas populares, como Campos Elíseos, espremido entre a Barra Funda e o Bom Retiro, operários, e Santa Efigênia, encortiçado. A ida para Higienópolis e Paulista tinha por objetivo o afastamento destes locais, de fedor e “contaminações”. (ROLNIK, 1981 apud BOTELHO, 2007)

Conforme afirma Ferreira (2005, p. 06):

A localização é um fator de diferenciação espacial por motivos óbvios: terrenos com uma vista privilegiada, ou situados em locais de fácil acesso, ou muito bem protegidos, ou próximos a rodovias ou ferrovias, tornam-se mais valiosos para interesses variados. São mais agradáveis para o uso habitacional, ou melhores situados para escoar a produção de uma fábrica, ou para atrair mais consumidores para uma loja, e assim por diante. Nas cidades brasileiras do início do século passado, que acabamos de descrever, os bairros centrais, que tinham boa infra-estrutura, concentravam mais gente, dispunham de linhas de bonde, eram próximos das estações de trem, eram os bairros privilegiados onde acontecia a vida urbana e comercial nascente, e onde se instalavam os palacetes da elite, embora as vezes bairros um pouco mais “distantes”, como a avenida Paulista, em São Paulo, atraiam os poderosos justamente pela sua exclusividade.
Ao findar o século XIX, já se havia estabelecido em São Paulo um mercado imobiliário considerável, constituído por casas, oficinas e quartos para aluguel e loteamentos de antigas chácaras.

Nos primeiros anos do século XX, a indústria já se encontrava consolidada na capital paulista e a racionalidade do capital monopolista já se manifestava nas grandes concessionárias de serviços públicos, na incorporação de novas tecnologias importadas (iluminação, bondes elétricos) e nas grandes companhias loteadoras. (BOTELHO, 2007)

Foi a atividade cafeeira que possibilitou o acúmulo de capitais até 1930, mas ao final dos anos de 1930 a cidade de São Paulo já era o maior centro industrial da América do Sul. (BOTELHO, 2007)

Em termos de estruturação espacial, a tendência observada nas primeiras décadas do século XX foi mesmo a da formação de bairros operários ou proletários, nas áreas de várzeas, e dos bairros burgueses nas áreas mais altas, em geral colinas. O centro acumulava as funções administrativas e comerciais da cidade. A zona industrial encontrava-se, principalmente nos bairros de várzea, não longe das vias férreas: Brás, Belenzinho, Tatuapé, Comendador Ermelino e São Miguel Paulista; ao longo dos trilhos da Central do Brasil, Pari, Mooca, São Caetano do Sul e Santo André; Barra Funda, Água Branca, Lapa e Osasco, também servidos pela Sorocabana. (BOTELHO, 2007)

O Brás e a Lapa eram os bairros operários, tanto pela proximidade da estrada de ferro inglesa, que tornava interessante a implantação das fábricas, quanto por serem as várzeas dos rios Tamanduatey e Tietê, com forte ocorrência de alagamento e, portanto, pouco interessantes ao assentamento habitacional das elites. (FERREIRA, 2005)

É importante ressaltar que até a década de 1930, a forma dominante de morar da população paulistana (incluindo a classe média) era a casa de aluguel, situação normal, pois não havia formas de financiamento da casa própria. A casa de aluguel era produzida por uma gama muito variada de investidores privados com o objetivo de conseguir uma boa rentabilidade. (BONDUKI, 2004)

A área residencial estava, então, caracterizada na cidade da seguinte forma: bairros de classe média na periferia e no centro; bairros operários, nas vizinhanças das áreas de indústrias; e os bairros burgueses (ou aristocráticos), desde os Campos Elíseos até a Av. Paulista, junto ao, na época nascente, Jardim América. (BOTELHO, 2007)

Concomitantemente a essa expansão da cidade, inicia-se também o processo de verticalização: as construções verticais passaram de 4% em 1910, para 33% em 1920. (BARBOSA, 1987 apud BOTELHO, 2007) Mas a verticalização assume mesmo proporções bem mais significativas após a década de 1940, consolidando as expectativas da década de 1930. (SOMEKH, 1997 apud BOTELHO, 2007)

A partir de 1940, o crescimento de São Paulo aconteceu principalmente através da abertura e ocupação (parcial) de novos e distantes bairros, na periferia da cidade. Isso foi possível pela implantação de um sistema rodoviário que permitia a apropriação do espaço de forma bem dispersa e rarefeita. (SILVA, 1991)

É importante se ter o conhecimento que, anterior a este período, por volta de 1925, teve início em São Paulo a operação dos auto-ônibus, essencial para a viabilização do padrão periférico. Os ônibus puderam propiciar o acesso a áreas distantes e pouco ocupadas, embora este sistema só tenha sido regulamentado pela Prefeitura da cidade em 1934. Enfim, este sistema foi tão fundamental para a formação da periferia paulistana que, posteriormente foi comum ver a associação de empresas de ônibus com empresas de loteamento. (BONDUKI, 2004)

A expansão horizontal de São Paulo ocorreu, basicamente, sob comando dos empreendedores de parcelamento do solo e da dinâmica do mercado fundiário de características marcadamente especulativas. O parcelamento de vastas áreas aconteceu de forma descontínua, deixando vazios para a posterior valorização. Tal padrão periférico teve como consequência à expansão dos limites da área ocupada por usos urbanos para muito além do que seria compatível com a população instalada. (SILVA, 1991)

A especulação imobiliária foi muito intensa na década de 1930 e 1940, também a falta de lotes disponíveis nas áreas mais próximas à densa ocupação da cidade, desviados pela especulação, seus altos preços, obrigaram parte dos moradores (sobretudo migrantes nacionais) a se estabelecerem em áreas mais afastadas. Surge assim, um extenso “cinturão” de loteamentos suburbanos, mas, conforme dito no parágrafo anterior, ocupados de forma esparsa. Proliferaram as “vilas” e os “jardins”: Vila Pirituba, Vila Comercial, Vila Pereira Barreto e Vila Palmeiras, na área de Pirituba; Vila Amália, Vila Aurora, Vila Mazzei, Vila Cachoeira, Vila Germinal, Guapira, Vila Nilo, na Zona Norte; Vila Medeiros, Jardim Matarazzo, Vila Matilde, na Zona Leste; Vila Formosa, Vila Nova Manchester, Vila Carrão, Vila Regente Feijó, no quadrante sudeste; Vila Gomes, Caxingui, Butantã, Presidente Altino, Cidade Jardim, a oeste do Rio Pinheiros; Vila Remédios, Vila Jaguara, Vila Mangalot, ao norte do Tietê, entre Osasco e Pirituba. (BOTELHO, 2007)



Com o crescimento populacional, nas décadas de 1940 e 1950, incrementa-se a verticalização das áreas centrais, primeiramente para atender à demanda de espaços comerciais e, depois, residenciais para a classe média. Entretanto, nesta época, também se inicia o processo de favelização da cidade. (BOTELHO, 2007)

A enorme oferta de lotes baratos (distantes e desprovidos de benfeitorias urbanas) à venda nos quatro cantos da cidade, passíveis de serem pagos à prestação, que podiam ser ocupados sem os custos e os aborrecimentos envolvidos na aprovação de uma planta e sem o risco da fiscalização, com acesso por transporte público (mesmo que precário, lento e complementado por longas caminhadas), viabilizou o mercado de loteamentos periféricos e criou uma alternativa habitacional de massa para os trabalhadores de baixa renda. (BONDUKI, 2004)

Outro fator que se pôde ver, nesta época, foi uma segregação até entre as camadas de baixa renda. Mesmo entre os mais pobres, para quem já sobraram as piores localizações do espaço urbano, houve uma disputa que fez com que as camadas de renda muito mais baixa ficassem com a pior localização possível: os mais pobres estavam longe do emprego e também das possibilidades de consumo. (BOTELHO, 2007) A Zona Leste seria a mais pobre das grandes regiões paulistanas até a década de 1970, sendo também o vetor mais populoso. (VILAÇA, 1978 apud BOTELHO, 2007)

Neste momento, é importante ressaltar a consideração de Déak (2006: p.11):


A legislação paulistana sempre veio a posteriori da efetivação dos loteamentos e da cidade. Não foram leis que vieram para fazer a urbanização, vieram para organizar o mercado imobiliário cheio de disputas. Por isso, no processo de urbanização em São Paulo não se pode deixar de verificar qual a função, o papel das companhias urbanizadoras, ou seja, do mercado imobiliário, organizador da estruturação da cidade que permanece até hoje. Entendemos como mercado imobiliário as atividades que compreendem o parcelamento, a construção de infraestrutura, a incorporação, a construção dos imóveis, e sua comercialização e venda. Assim, a atividade do urbanismo na cidade de São Paulo teve mais relação com o setor privado que com o setor público. O setor público viabilizou as intenções privadas.

 
A cidade de São Paulo também teve um intenso crescimento após a Segunda Grande Guerra, que foi marcado pela grande segregação urbana e fragmentação do espaço. (BOTELHO, 2007) Tal segregação significou, mais uma vez, para os mais pobres a dificuldade de acesso aos serviços e infra-estrutura urbanos (transporte precário, saneamento deficiente, drenagem inexistente, dificuldade de abastecimento, difícil acesso aos serviços de saúde, educação e creches, maior exposição à ocorrência de enchentes e desmoronamentos etc.), além de menores oportunidades de empregos e de profissionalização, maior exposição à violência, difícil acesso a justiça oficial e ao lazer. (MARICATO, 2003)

O crescimento que São Paulo experimentou na primeira metade do século XX continuou, de forma acelerada, nas duas décadas seguintes, 1960 e 1970, configurando a implosão – explosão da cidade. Em 1973, foi instituída a Região Metropolitana de São Paulo, devido ao crescimento territorial da cidade de São Paulo, que a fez conurbar com outros municípios vizinhos. (BOTELHO, 2007)

Apesar de relativa queda no movimento migratório em direção ao município e à sua Região Metropolitana a partir da década de 1980, o crescimento demográfico de São Paulo continuou sendo expressivo, o que contribuiu para a formação da grande periferia paulistana. E, mesmo observando-se uma queda na migração para São Paulo, a questão da moradia e da localização da população pobre não mudou, tendo em vista a continuidade da perversa concentração de renda provocada pelo modelo econômico capitalista desenvolvido no Brasil ao longo de todo o século XX. (BOTELHO, 2007)

A partir da década de 1970, tem-se o processo de deslocamento da centralidade em São Paulo para o vetor sudoeste da cidade, como parte da lógica de valorização fundiária estabelecida. Primeiramente, esta centralidade se desloca do “Centro Velho” para a Avenida Paulista e, mais tarde, para áreas da Faria Lima, Luis Carlos Berrini e Marginal do Rio Pinheiros, configurando este vetor como a principal área de valorização imobiliária da cidade no presente momento histórico. (BOTELHO, 2007)

Na década de 1980, as áreas centrais como: Jd. América, Cerqueira César, Jd. Paulista, Consolação, Indianópolis, Perdizes, Santa Cecília, Aclimação, Bela Vista, Vila Madalena, Cambuci, Liberdade, Alto da Mooca, estavam totalmente equipadas em termos de infra-estrutura e equipamentos urbanos; áreas intermediárias como: Vila Mariana, Ibirapuera, Bom Retiro, Sé, Belenzinho, Barra Funda, Santa Efigênia, Mooca, Lapa, Saúde, Santana, Tatuapé, Ipiranga, estavam equipadas em 70%; e as áreas periféricas, como: Butantã, Casa Verde, Penha de França, Tucuruvi, Vila Maria, Limão, Vila Formosa, Vila Matilde, Jabaquara, Vila Prudente, Nossa senhora do Ó, Cangaíba, Santo Amaro, Pirituba, Capela do Socorro, Vila Nova Cachoeirinha, Ermelindo Matarazzo, Itaquera, Perus, São Miguel Paulista, Brasilândia, Jaraguá, Guaianases, Parelheiros, apenas com 23, 4% de infra-estrutura e equipamentos. (SACHS, 1999 apud BOTELHO, 2007)

Em 9 de Dezembro de 1986, no governo de Jânio Quadros, foi aprovada pela Câmara Municipal a Lei 10.209 ou Lei do Desfavelamento, que cumpria dois objetivos básicos de intervenção urbana: a descaracterização do zoneamento e a intenção de eliminar, com o menor desgaste possível, as favelas situadas nas áreas nobres da cidade. Obviamente, esta Lei teve o apoio dos principais empresários de incorporação imobiliária da cidade. (BONDUKI, 2000)

As Operações Interligadas (OI) possibilitaram alterações pontuais nas restrições à ocupação do solo e nos coeficientes de aproveitamento sem tornar necessárias mudanças gerais na Lei de Zoneamento, e também criaram uma forma concreta de remover favelas incômodas, que por sua localização constrangiam negócios imobiliários em áreas muito valorizadas da cidade. Através desta Lei, viabilizou-se o túnel sob o Rio Pinheiros e Parque do Ibirapuera, por exemplo. (BONDUKI, 2000)

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