Distratos no mercado imobiliário: a busca pela regulação dos direitos e deveres de clientes e incorporadores
O
grande vilão do mercado imobiliário nos últimos tempos atende pelo nome de
“Distrato” que, embora sempre estivesse presente, de 2015 para cá, tornou-se um
terrível problema para os incorporadores devido ao grande aumento do número de
casos.
Atualmente, os empresários e entidades do setor estão empenhados
em conseguir a regulamentação de uma lei específica e clara sobre o tema, que é
inexistente no país até o momento. Assim, aproveito a oportunidade para fazer
algumas ponderações sobre o assunto, relatando de forma um pouco mais detalhada
suas causas e consequências. Confesso que queria um texto mais enxuto, mas foi impossível, mesmo deixando itens que seriam menos relevantes para trás.
Primeiramente, vamos especificar o que é o distrato,
propriamente dito: é a extinção de uma relação
contratual, ou seja, a anulação ou o rompimento de um contrato estabelecido e
assinado entre duas ou mais partes.
No mercado imobiliário, quando um cliente adquire um
imóvel “na planta”, isto é, que ainda será construído, ele assina um Contrato de Venda e Compra com a
incorporadora que, nada mais é que uma “Promessa” (termo jurídico utilizado
nestes casos), pois o bem adquirido ainda não existe.
O benefício do cliente ao comprar dessa forma é que o
pagamento do valor da entrada do imóvel é diluído em diversas parcelas ao longo
de muitos meses, enquanto a construção do empreendimento é executada. Assim, no
momento de receber as chaves de sua unidade, após o término da obra, pelo menos
20% do imóvel (a depender das condições estabelecidas para a compra) está pago
e o restante poderá ser financiado por algum banco ou instituição financeira.
Como a maior parte dos Instrumentos de
Transação de Bens Imóveis, esse Contrato
costuma ser descrito como “irrevogável e irretratável”, ou seja, não pode ser desfeito
por nenhuma das partes em hipótese alguma. No entanto, o Código de Defesa do
Consumidor (Lei 8.078/1990), com sua redação superficial e oblíqua sobre o
tema, dá uma brecha para que haja esta possibilidade, no Artigo 53. Graças a
esta Lei, a maioria maciça dos juízes lavra sentenças em favor do cliente que
pede a rescisão contratual e exige a devolução da maior parte dos valores
pagos.
Ao longo de anos de atuação no mercado imobiliário, atendi
inúmeros clientes que solicitaram o distrato de suas unidades, sejam elas
residenciais ou comerciais. Nestes atendimentos, pude identificar que as razões
que levam os clientes a solicitarem o distrato são muito distintas umas das
outras, o que torna o tema complexo. Abaixo, vou tentar elencar as principais:
- Queda brusca e inesperada dos rendimentos ou fatalidades: devido ao longo prazo de um contrato de imóvel na planta (normalmente 36 meses), é comum que muitos clientes tenham mudanças em suas vidas durante o período e, na crise econômica que se instalou em nosso país nos últimos dois anos, a maioria dessas mudanças tem sido negativas, graças ao alto índice de desemprego, à redução do consumo (que influenciou negativamente empresários e prestadores de serviços), à inflação que corroeu o poder o compra dos cidadãos, entre outros fatores, como fatalidades na família. Nestes casos, não há muito o que o incorporador possa fazer, e é absolutamente plausível que o cliente peça o distrato e que receba um percentual razoável do que pagou de volta. Mesmo o incorporador precavido, que realiza a análise de crédito de seus clientes antes de assinar o Contrato e concretizar a venda, está sujeito a estes casos e, na maior parte das vezes, tem interesse em fazer acordo com este cliente, que poderá voltar a comprar um imóvel quando sua situação financeira tornar a melhorar.
- Falta de planejamento financeiro adequado: a inabilidade que muitos brasileiros têm para lidar com o orçamento doméstico faz com que alguns clientes, mesmo tendo uma renda com a qual seria possível adquirir algum bem, perceba, em poucos meses após a compra do imóvel, que não conseguirá pagar por ele. Muitos, também, não levam em conta a correção monetária dos contratos (que é descrita nos instrumentos assinados) na hora de fazer seu planejamento e acabam por se assustar quando se deparam com seus boletos de cobrança atualizados. Neste caso, não parece correto aceitar que recaia sobre o incorporador o ônus da falta de planejamento financeiro do cliente.
- Não aprovação de crédito para financiamento imobiliário: com o aumento da taxa básica Selic, os juros dos financiamentos imobiliários subiram muito, principalmente em 2016, ano em que muitas entregas de empreendimentos foram realizadas. Este aumento dos juros fez com que a renda familiar mínima necessária para se aprovar um valor de crédito aumentasse também. Como esta última não aumentou na mesma proporção, muitos clientes que queriam continuar com suas unidades, não tiveram esta possibilidade. Além disso, os bancos deixaram suas análises de risco mais rígidas, por exemplo: funcionários da indústria automobilística, que teve alto índice de demissões, foram recusados por alguns agentes financeiros ou tiveram seu crédito muito reduzido, o que inviabilizou o negócio. Embora no Contrato esteja claro que a responsabilidade de se conseguir crédito para a quitação do imóvel é, única e exclusivamente, do adquirente, os clientes que se veem nestas condições não têm outra opção que não solicitar o distrato, caso não possam obter os recursos necessários de outras formas. Também aqui, não é viável que o maior prejudicado seja o incorporador, quando este cumpriu integralmente com suas obrigações contratuais, obviamente.
- Queda dos preços dos imóveis e baixa expectativa de ganhos em curto prazo para clientes especuladores: pode-se dizer que, pelos menos de 2010 até 2014, o mercado imobiliário brasileiro experimentou anos de bonança, nos quais os preços dos imóveis dispararam, motivo pelo qual muitos falsos investidores, mais corretamente adjetivados de especuladores, adentraram no circuito buscando altos ganhos em curto prazo com a compra de imóveis. A partir de 2015, os preços dos imóveis começaram a cair e, em 2016, a instabilidade política do país somada à crise econômica, fizeram com que a queda dos preços fosse mais acentuada. Dessa forma, passou a ser muito comum os incorporadores receberem este tipo de cliente, que não tinha nenhum problema financeiro, solicitando o distrato de suas unidades (seja comerciais ou residenciais) sob alegação de que perderam dinheiro. Ora, seguindo esse raciocínio, partindo do princípio jurídico de que um Contrato tem de garantir os mesmos direitos aos dois lados envolvidos, o incorporador deveria poder, então, solicitar o distrato ao cliente para vender novamente o imóvel mais caro, num caso de valorização do imóvel, o que é absolutamente proibido. Ainda é interessante mencionar, num parêntese aqui, que o Artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor diz o seguinte: “consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado. ” (grifo da autora). Um cliente que deixa de pagar um Contrato (ou não, pois a maior parte destes especuladores solicitam o distrato estando adimplentes em seus pagamentos), pura e simplesmente, por julgar não aferir vantagem financeira na transação, vantagem esta que nunca lhe foi prometida, diga-se de passagem, deve ter o mesmo tratamento dos outros casos descritos acima, em detrimento do empresário que está prestando seu serviço conforme fora contratado? É esperado que não, que este cliente seja obrigado a seguir cumprindo o Contrato que firmou de livre e espontânea vontade, ou está-se jogando fora qualquer outra das demais obrigações que foram estabelecidas no instrumento jurídico do qual aqui tratamos.
- Atraso ou não entrega da obra: muitos clientes solicitam o distrato devido ao atraso, muitas vezes não notificado e justificado, das obras do empreendimento (considerando aqui como atraso o não cumprimento dos prazos estipulados contratualmente) ou, até, pela não entrega da obra. Nestes casos, claramente, já há uma quebra de Contrato por parte do incorporador e, assim, é totalmente compreensível que o cliente também possa solicitar o cancelamento de sua relação contratual com a empresa, exigindo, a compensação financeira por todo o dinheiro e tempo investido.
Soma-se às razões mencionadas acima, a pura, simples e
injustificada vontade de desfazer o negócio, que muito é alegada pelos clientes
também e, mais uma vez, põe em cheque o Contrato
existente, abrindo precedente para que qualquer um possa deixar de cumprir suas
obrigações sem pena ou com uma penalidade mínima. Interpreta-se aqui como “qualquer
um” apenas o cliente comprador, pois o incorporador é sempre obrigado a cumprir,
integralmente, suas obrigações.
É claro que há que se
prever mecanismos e leis (como já existem) que protejam os consumidores contra
abusos por parte das empresas, pois, via de regra, são o elo mais frágil da
corrente e devem ser assistidos. Entretanto, quis mostrar acima que é injusto
aceitar uma lei que trata tão superficialmente do assunto e que beneficie, exclusivamente,
um lado sem levar em consideração as consequências que isso pode ter sobre o
mercado todo e, até, sobre a economia do país.
Quando um
incorporador lança um empreendimento imobiliário, ele está, invariavelmente,
contando que parte dos recursos para a execução da obra virá do recebimento
direto de clientes, uma vez que os bancos não costumam conceder financiamento
para 100% da obra. Isso é normal, todo e qualquer empresário, de qualquer setor
da economia, usa o que recebe de seus clientes para pagar as contas de seu
negócio.
No momento em que
grande parte dos compradores passa a pedir a rescisão contratual, o
incorporador, além de perder boa parte de sua receita ainda precisa desembolsar
recursos para restituir estes clientes. Assim, o fluxo de caixa do empresário
para esta obra fica totalmente comprometido e seriamente impactado, pois seu
compromisso de entregar a obra aos demais que permanecem cumprindo o Contrato, precisa ser mantido, mas
falta-lhe recursos para tal.
Outra
dificuldade que o incorporador passa com o grande número de distratos em um
empreendimento é que muitos contratos de financiamento à produção (para a
execução das obras) vinculam a liberação de recursos financeiros com o avanço
físico e o avanço de vendas. Logo, quando há distratos, não há avanço de vendas
e o caixa do projeto mais uma vez sofre.
Há
ainda que se falar que cada empreendimento imobiliário é uma empresa, uma Sociedade
com Propósito Específico (SPE), quase sempre submetida às regras de Patrimônio
de Afetação conforme disposto nas Leis 4.591/1964 e 10.931/2004. Tanto a
forma jurídica de SPE quanto a afetação do patrimônio de uma incorporação
imobiliária têm o objetivo maior de proteger o cliente, separando,
definitivamente, o projeto em questão dos ativos de seus sócios,
incorporadores. Essa proteção ao cliente (muito bem-vinda pelo mercado,
aproveito para mencionar) acaba por restringir a movimentação de recursos entre
empreendimentos de uma mesma empresa, e o incorporador precisa ter mais disponibilidade
em seu caixa para aportar em um projeto que sofre com a alta incidência de distratos.
O
resultado dessa conjunção de fatores pode acabar sendo o atraso das obras por
falta de recursos financeiros e uma verdadeira “bola de neve” se instala, pois
muitas vezes o atraso provoca ainda mais distratos.
Por
todo o exposto, é que se torna fundamental a existência de uma lei objetiva que
regre os Contratos imobiliários de
forma que o cliente já conheça exatamente seus direitos e deveres quando
adquirir um imóvel na planta e que os incorporadores não fiquem à mercê de
decisões judiciais distintas, a depender da interpretação dos juízes acerca de
uma lei incompleta sobre o assunto.
A
regulação do quanto deverá ser retido e devolvido aos clientes nos casos de
distratos, assim como do prazo máximo para esta devolução, é de extrema
urgência para a retomada sadia do setor. Investidores externos também aguardam
por isso para aplicarem seus recursos de forma mais agressiva no segmento.
O
mercado imobiliário e a construção civil têm extrema relevância para a economia
brasileira e precisa ter total incentivo do Estado para que seu desenvolvimento
seja perene e contribua fortemente para o crescimento do país.

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