Construir cidades: uma missão para arquitetos e incorporadores




Artigo publicado na Revista Sacada, Ano 4, Nº 8, 2017 :

O mercado imobiliário brasileiro passou por momentos bem difíceis nos últimos dois anos devido à grave recessão econômica e à crise política que ainda pairam sobre o país. Digo “passou”, conjugando o verbo no pretérito, por ter plena convicção de que, agora, o momento já é de readequação da forma de atuar e pensar o mercado e não mais de lamentação e inércia.
Períodos de crise e pujança são ciclos inerentes ao capitalismo, e as fases negativas devem ser encaradas como grandes oportunidades para se fazer mudanças e correções de rumo, que não costumam ocorrer quando tudo está “muito bem, obrigado”.
           Algumas das consequências positivas da crise, que já podemos avistar no mercado imobiliário, é uma maior consciência do incorporador sobre seu papel na formação das cidades e um retorno do arquiteto a sua função social de agente da produção da paisagem e da vida urbana. Mesmo que ainda incipiente, essas reações tendem a se consolidar como o novo modelo de atuação, e isso é muito bom.
Visitando um pouco nosso passado, mais especificamente entre as décadas de 1940 e 1970, podemos nos orgulhar de um período que foi muito rico para a arquitetura brasileira, quando as Escolas de Arquitetura Moderna Carioca (liderada por Lúcio Costa) e Paulista (liderada por Vilanova Artigas) tomavam conta do cenário urbano das metrópoles brasileiras. Durante esse período, pensar o mercado imobiliário passava por pensar a cidade, por conceber uma arquitetura de valor e por deixar um legado aos seus cidadãos. Toda a produção arquitetônica estava centrada nos ideais do coletivo. Como exemplos dessa produção, podemos mencionar ícones como: o Edíficio Prudência (Rino Levi), o Edifício Lousane (Franz Heep) e o Louveira (Vilanova Artigas), todos em São Paulo; o Edifício Bristol (Lúcio Costa) e o Edifício Júlio Barros Barreto (MMM Roberto), no Rio de Janeiro; ou, em Salvador, o Edifício Otacílio Gualberto (Diógenes Rebouças).
Edifício Louveira - fotos atuais e imagem de publicidade de venda veiculada na época de sua construção

Vale lembrar que a função do arquiteto como transformador das cidades e, por conseguinte, da sociedade, extrapolava a produção de edifícios institucionais ou residenciais para as elites. Isso fica muito claro em outros exemplares do mesmo período, tais como o Copan (Oscar Niemeyer) ou o Conjunto Nacional (David Libeskind), estão localizados na capital paulista. Ambos são empreendimentos de uso misto e possuem uma preocupação evidente com o funcionamento da cidade, a diversidade e a convivência entre todos. Também, aqui, é válido mencionar a atuação emblemática de Vilanova Artigas na produção habitacional da CECAP (Caixa Estadual de Casas para o Povo), entre 1967 e 1976, em algumas cidades do estado de São Paulo.
Um condomínio CECAP - projeto de Artigas - foto atual

Fazer toda essa “viagem” no tempo é relevante para tornar mais claro o quão forte foi o “apagão” da nossa arquitetura durante os últimos trinta e, principalmente, últimos dez anos, frente ao volume gigantesco que atingiu a produção imobiliária no Brasil.
Obviamente, que com exceções, o que se viu produzido pelos incorporadores imobiliários nos tempos atuais foi um sem número de prédios e condomínios com pouca ou nenhuma preocupação estética e social para com as cidades e seus cidadãos. No entanto, imputar essa responsabilidade unicamente aos incorporadores é isentar os arquitetos que cederam a tais pressões e condições de mercado do não cumprimento de sua principal missão profissional: projetar espaços únicos, de qualidade, funcionais e agradáveis a vida do homem e contribuir para uma cidade democrática e mais acolhedora.
Felizmente, os tempos parecem ser outros e, cada vez com mais vigor, vem ressurgindo a boa e velha arquitetura autoral e atemporal, aquela que reafirma o compromisso do arquiteto e, agora, também do incorporador, como agentes transformadores da cidade e de uma sociedade, que tem na forma em que vive o retrato de sua evolução intelectual.
Por enquanto, essa mudança de postura é vista quase que exclusivamente na concepção de produtos para as classes mais abastadas, nos que são chamados no mercado de “alto padrão”. Mas, até mesmo pelo exemplo citado do que se produziu na CECAP antigamente, é possível e necessário que a arquitetura se aproprie também dos projetos direcionados à população de mais baixa renda, levando a estes, além de características de preocupação estética, soluções construtivas e de materiais para sua viabilidade financeira e de implantação em campo.
Na quase total ausência do Estado na construção de habitação para as classes menos favorecidas, é esperado que os incorporadores mudem a forma de pensar também nos projetos populares, aqueles que hoje se enquadram no programa “Minha Casa, Minha Vida” (MCMV).
Perspectiva ilustrada projeto MCMV de Pernambués - Lelé

Nosso saudoso e grande arquiteto, João Filgueiras Lima, o Lelé, no ano de 2011, fez um projeto fantástico para ser utilizado pelo MCMV na reurbanização da favela Pernambués, em Salvador. Unindo criatividade, funcionalidade, baixo custo e estética, aquele é um exemplo de arquitetura de qualidade, que pensa racionalmente nos materiais e humanamente nas comunidades. Infelizmente, como não é de se admirar, o projeto não saiu do papel, mas pode servir de inspiração a muitos outros.
Enfim, o que é esperado desse novo momento do mercado de incorporação imobiliária é que tanto incorporadores quanto arquitetos não sejam mais omissos a sua relevante participação na construção não apenas de prédios, mas de cidades e de cenários onde a vida humana acontece de verdade.
Essa mudança de pensamento tende a ocorrer também por exigência dos próprios consumidores, que não desejam mais comprar o que lhes é apresentado pura e simplesmente, mas sim buscam adquirir o que lhes traz sentido à vida, o que lhes proporciona uma nova e boa experiência. A era da customer experience está aí e deve passar, sem dúvidas, pelo mercado imobiliário, desde o momento da concepção dos produtos.
Dessa forma, os projetos de arquitetura, de interiores e de paisagismo não serão mais vistos como commodities pelos incorporadores, uma vez que são partes fundamentais da experiência que os consumidores terão com sua marca.
Inicia-se, por isso, no mercado uma etapa que antecede ao projeto e está sendo chamada de curadoria de arquitetura. Assim como acontece nas indústrias da moda e da arte, essa curadoria, além de ser uma espécie de crivo estético, tem a função de apresentar os profissionais mais apropriados para atuar em cada tipo de produto, localização e público alvo e que mais se enquadre aos métodos construtivos, tecnologias e partido arquitetônico com os quais o incorporador se identifica. Esse tipo de trabalho já é realizado com êxito por algumas poucas incorporadoras, mas deve ser amplificado no mercado.

Por tudo exposto, se torna possível acreditar que melhores dias estão chegando para a nossa produção imobiliária, e ajudar na conscientização da importância da boa arquitetura para o desenvolvimento de novos empreendimentos, tanto pelos consumidores assim como também pelo futuro de nossas cidades, deve ser uma tarefa de todos os arquitetos.

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