“Minha Casa, Minha Vida”: uma Reflexão sobre o Maior Programa Habitacional da História do Brasil
O ano era 2008, uma terrível crise se abateu sobre os EUA e culminou na falência do banco Lehman Brothers,gerando graves consequências para a economia mundial, e atingindo a economia brasileira em um momento de auge, quando completava uma sequência de seis trimestres de crescimento e aceleração.
Nesta reversão das expectativas, os bancos por aqui reagiram com excesso de prudência e retraíram fortemente o crédito, o que levou as empresas a reverem seus planos de produção e de investimento, resultando numa rápida desaceleração da atividade econômica brasileira.
Para o mercado imobiliário, que não existe sem crédito, o ano seguinte de 2009 iniciou um tanto quanto pessimista, porém, numa grata surpresa a todos, terminou com ótimos resultados e, ainda, com as melhores perspectivas possíveis de futuro. Pois bem, grande parte desta mudança de cenário se deveu ao lançamento do Programa Habitacional “Minha Casa, Minha Vida”, em março daquele ano.
Maior programa habitacional da história do Brasil, o “Minha Casa, Minha Vida”, operado pela Caixa Econômica Federal, existe e resiste até hoje como importante instrumento tanto para a população das camadas mais baixas da sociedade atingirem o objetivo da casa própria, como para o fomento do mercado imobiliário e da construção civil no país.
Segundo um estudo da FGV para a ABRAINC (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), até junho de 2018, foram contratadas 5,3 milhões de unidades no programa, sendo que 51,2% destas foram direcionadas para a “Faixa 2” do “Minha Casa, Minha Vida”, que enquadra famílias com renda bruta mensal até R$ 4.000,00.
As regiões do país com maior produção de habitações no programa até aqui foram a Sudeste – com 1,9 milhões de unidades – e a Nordeste, com 1,4 milhões. Entretanto, estas duas regiões se diferenciam ao compararmos que: na Sudeste, 56% da produção foi voltada à “Faixa 2” do programa, puxando a média nacional acima mencionada; e, na Nordeste, 51% foi voltada à “Faixa 1” – que enquadra famílias com renda bruta mensal até R$ 2.600,00 (“Faixa 1” até R$ 1.800,00 e “Faixa 1,5” até R$ 2.600,00).
Os números efetivados são altos e, de certa forma, bastante satisfatórios, se levarmos em consideração que, durante a recessão que se abateu sobre o Brasil desde 2014, e da qual ainda não saímos completamente, o “Minha Casa, Minha Vida” foi onde, praticamente, toda a cadeia produtiva do mercado imobiliário e da construção civil se apoiou para não ruir de vez. Porém, ao completar dez anos, algumas reflexões são necessárias acerca do aprimoramento do programa em termos de gestão – política e de recursos – e de atuação parte da União, dos municípios e, também, das incorporadoras e construtoras.
Um estudo realizado pelo Instituto Escolhas, em parceria com a CEPESP / FGV, de janeiro de 2019, concluiu que o “Minha Casa, Minha Vida” não resolveu, e até contribuiu para agravar, um problema bastante comum das grandes cidades, que é a segregação espacial e o isolamento das famílias mais pobres em regiões com pouca infraestrutura urbana, de equipamentos públicos e de serviços, e, cada vez mais, afastadas das zonas centrais.
O problema está concentrado no desenvolvimento de empreendimentos enquadrados nas “Faixas 1 e 1,5” do programa, pois, em todas as regiões do país, se verifica que os mais pobres são levados a morar mais longe e em condições mais precárias, devido, basicamente, ao custo da terra. Porém, o estudo relativiza o significado de “longe”, uma vez que o cerne da questão está na falta de infraestrutura urbana, de equipamentos públicos e de serviços, e não na localização afastada em si. O “longe”, neste caso, é o “longe social” e não apenas o “longe espacial”, caracterizado pela distância do centro da cidade, por exemplo.
É evidente que o “Minha Casa, Minha Vida” precisa ser aprimorado, mas sem o apoio dos municípios, que são os responsáveis efetivos pelas políticas de planejamento urbano e de habitação locais, não há como avançar de fato. Ao se fazer um recorte, nos projetos contratados para as “Faixas 1 e 1,5” do programa nas regiões metropolitanas de Salvador (RMSa), Rio de Janeiro (RMRJ) e São Paulo (RMSP), é possível compreender alguns pontos muito relevantes, que sustentam tal afirmação:
- A RMSa, com 80 empreendimentos geolocalizados no estudo, apresentou um crescimento intenso em sua mancha urbana a partir de 2015, sendo que 86% destas unidades habitacionais encontram-se localizadas em áreas de novo desenvolvimento urbano. Tal fato corroborou para que a região de Salvador obtivesse os piores indicadores de infraestrutura e saneamento básico entre todas as demais regiões, com apenas 46% de cobertura de esgoto nestas áreas.
- A RMRJ, por sua vez, apesar de compreender o maior volume de empreendimentos, com 162 geolocalizados e 57% destes em área de expansão da mancha urbana, por ser uma região espacialmente mais compacta, apresenta índices mais altos de infraestrutura urbana, mas também insuficientes, chegando a 63% de cobertura de esgoto. Entretanto, o maior problema destes projetos no Rio de Janeiro está relacionado à segurança pública, uma vez que mais de 7,5 mil unidades habitacionais estão vazias, sendo que a causa mais provável (porém não investigada e comprovada até aqui) é a invasão das milícias em, praticamente, todos os empreendimentos “Faixa 1” da capital fluminense.
- Já, a RMSP tem um cenário um pouco diferente das demais, uma vez que, concentrando 94 empreendimentos geolocalizados, demonstrou um baixo crescimento de sua mancha urbana, com apenas 6% das unidades habitacionais localizadas em área de novo desenvolvimento urbano e um índice de infraestrutura urbana acima da média, com 81% de cobertura de esgoto. Entretanto, mesmo localizados em áreas urbanas já existentes, os investimentos realizados tanto pelos municípios (principalmente por São Paulo), quanto por alguns incorporadores, para levar infraestrutura e saneamento básico a localizações tão distantes dos principais centros urbanos se mostraram demasiadamente altos.
Apesar dos problemas levantados, o estudo do Instituto Escolhasconstatou o mérito do “Minha Casa, Minha Vida” ao analisar outros programas semelhantes do Chile, Colômbia e México, e concluir que a localização periférica dos conjuntos habitacionais populares é regra na América Latina, mas somente o Brasil conseguiu incluir famílias com renda mensal inferior a três salários mínimos, por compreender que não é possível exigir deste público requisitos que pessoas muito pobres não são capazes de cumprir, tais como: nome limpo, poupança prévia e pré-aprovação de crédito.
Assim, levando em consideração que, segundo números apresentados pela FGV Projetos à ABRAINC – 2018, o déficit habitacional do país chega à 7,7 milhões de unidades atualmente, e que a potencial demanda futura demonstra o aumento para 9 milhões em 2027, com mais de 90% nas camadas mais pobres da população (com renda familiar até três salários mínimos), torna-se inegável a necessidade da continuidade do programa. No entanto, também é vital para nossas cidades e cidadãos que adequações sejam propostas e implementadas, a fim de desestimular a segregação espacial e corrigir a falta de infraestrutura urbana, equipamentos públicos, saneamento básico e serviços para os empreendimentos e seu entorno.
Uma possível solução, nada simples e que não é a única, poderá ser o estímulo à revitalização e reutilização de edifícios hoje abandonados nas áreas centrais das grandes metrópoles, principalmente sabendo-se que muitos deles são de propriedade da União. Desta forma, resolve-se três grandes problemas: 1. Promoção de moradia de qualidade aos mais pobres; 2. Garantia de acesso a infraestrutura e serviços públicos a todos os cidadãos; 3. Utilização dos imóveis públicos em estado de abandono, que causam prejuízo aos cofres públicos.
Estendendo a análise crítica para as outras faixas do programa – “Faixa 2”, famílias com renda bruta mensal até R$ 4.000,00 e “Faixa 3”, famílias com renda bruta mensal até R$ 7.000,00 – seu sucesso é incontestável. Segundo o Anuário do Mercado Imobiliário 2018, publicado pelo Secovi – SP, no último trimestre do ano passado, 51,6% das unidades residenciais lançadas no país estavam enquadradas no programa, sendo que na região Norte, este percentual chegou a 100%. Números que comprovam ainda mais a importância do “Minha Casa, Minha Vida” para o mercado imobiliário e a construção civil no Brasil.
Em São Paulo, também devido às diretrizes estabelecidas pelo Plano Diretor e Lei de Zoneamento da cidade, atualmente é possível verificar um movimento muito peculiar e positivo de alguns poucos incorporadores que estão se dedicando ao desenvolvimento de empreendimentos enquadrados no “Minha Casa, Minha Vida” – Faixa 2 e Faixa 3, em regiões centrais e até nobres da cidade. Isto é um grande avanço em termos de inclusão social e, por consequência, de mobilidade urbana, um problema grave que atinge todas as grandes capitais do país. O próximo passo desta evolução deverá ser melhorar a qualidade estética dos projetos e sua relação com a cidade.
Acredita-se que, em breve, o Governo Federal anunciará mudanças no programa, sobre as quais ainda tudo que se veicula é mera especulação. Por todo o exposto, espera-se que as reformas propostas venham para ajustar os problemas, principalmente de sua “Faixa 1”, e para acentuar a, indiscutível, contribuição que o “Minha Casa, Minha Vida” teve para a sociedade e para a economia do país até aqui.

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